Batata Frita e Sorvete X

Capítulo dez - A Vadia e o Babaca


Naquele dia eu voltei pra casa com a melhor aparência e a melhor desculpa do mundo. Na cabeça da minha mãe, eu tinha ido até a casa do Juninho ver uns filmes de terror.

E não tinha como não acreditar. Modéstia à parte, eu desenvolvi um excelente álibi. 

Passei o resto dos meus dias de suspensão jogando video game, indo ao cinema com a Pri, comendo e conversando com a tal da Ana Julia pela internet. Foram dias divertidos, mas no fim das contas foi bom voltar para a escola na segunda-feira.
Voltei com todo o pique, precisava compensar meu comportamento dos últimos dias. Eu tinha virado um zumbi com o término do meu namoro e deixei de fazer milhões de lições e trabalhos.

Eu estava pronto para começar de novo.

-O citoplasma de uma célula eucariótica contém organelas que desempenham funções específicas no metabolismo celular...

A aula de biologia era, no mínimo, sonolenta. Mas eu gostava. Enquanto o professor Jorge explicava toda aquela coisa sobre célula, eu me esforçava para não cochilar. Piscava várias vezes e cada vez que meu olho fechava era uma luta para abri-lo novamente. Depois de um tempo comecei a piscar mais lentamente, demorava cada vez mais para abrir os olhos, passei a ver dois professores Jorges explicando e depois...
Meu celular vibrou e eu despertei. Porra, não era pra eu ter dormido! Será que eu tinha perdido muita coisa?

O aparelho vibrou de novo. Enfiei a mão no bolso e peguei-o discretamente para ver quem ligava. O nome que piscava na tela principal me fez coçar os olhos para ter certeza de que eu não estava enxergando mal:

ANA CHAMANDO

Ana? A ANA? Tipo, a Ana? 

Eu mal pensava direito. Levantei a mão automaticamente e deixei as palavras fluirem.

-Jorge, tô passando mal. 

O professor me olhou  de lado. Ele odiava interrupções, mas pareceu aceitar dessa vez. Eu devia estar branco de choque.

-Vai... er... menino, vai. - Autorizou ele. O cara nem devia saber meu nome, mesmo depois de 5 anos de convivência. Palhaço.

Saí da sala quase correndo e atravessei a escola até o banheiro dos funcionários com o celular na mão. Lá, me enfiei numa cabine, tranquei-a e atendi o telefone.

Nada.

Olhei a telinha de novo "UMA CHAMADA PERDIDA"

Ok, ela deve ter ligado errado. Acontece. Ela deve ter confundido "João Guilherme" com "João". Quanta babaquice....

O celular vibrou "ANA CHAMANDO". Bom, ela não se confundiria duas vezes, certo? Respirei fundo e apertei o botão verde enquanto levava o aparelho ao ouvido.

-Alô?

-Ei... - nada tinha mudado. Ela continuava a ter a voz aguda e levemente infantil, aquilo me agradou.

-Quem é? - puta pergunta escrota. Era óbvio, ela sabia que eu sabia que era ela. (?)

-Ana...

-Ah, oi. - minha voz parecia natural, eu estava me saindo bem.

-Oi...

E foi isso, depois ficamos num silêncio mortal. Eu não queria falar nada, até porque foi ela quem tinha me procurado.
Só depois de exatamente 25 segundos ela começou:

-Olha, eu gosto de você. Aquilo da festa foi só uma brincadeira, eu estava bêbada e nem lembro de nada. O João é meu amigo só, não tem nada a ver, sério. É você quem eu amo 

As palavras dela saíram atropeladas e ela precisou recobrar o fôlego no final.
Eu não tinha palavras, literalmente. Continuei em meu silêncio.

-João Guilherme, eu sei que te magoei, sei que fui uma tosca, mas você não me amava? Foi só um deslize, volta pra mim.

"Volta pra mim"? "É você quem eu amo"? Que caralhos era aquilo? As palavras começaram a brotar na minha língua e eu não pensei duas vezes em soltá-las.

-Pelo menos você reconhece que deu mancada, em compensação não ta nem aí. Foi só um deslize, foi só a porra de um momento que me fez ficar mal por dias. Por que você não ligou antes então? Quis aproveitar os dias com o metido a surfista lá e agora cansou e quer o trouxa babão de volta? Ana, a gente tinha um negócio legal, um relacionamento meio doido, mas era bom. Brigar, dar mancadas é normal, mas você SEMPRE bebe demais nas festas e faz alguma merda. Da outra vez você beijou uma menina e eu relevei porque você tava tão doida que desmaiou no meio do beijo. Mas porra Ana, não da pra ser sempre idiota, fingir que nada aconteceu e cuidar de você como sempre faço. Eu tenho sentimentos, você sabe o que é isso?
Respirei. Nem percebi o quanto aumentei minha voz e o tanto que falei. As palavras foram saindo sem esperar meu cérebro modelá-las. Foram frases cruas, sentimentais e totalmente sinceras. Que gay, velho. Me senti envergonhado logo de cara, mas foi bom botar tudo pra fora. A Ana tinha que saber as consequências.

-Você leva tudo muito a sério. Foi só um beijo tosco - ela respondeu, friamente.

?????? minha cabeça criava uma explosão de dúvidas. Ela tava me tirando, não é possível.

-Me ligou pra quê então? Se pra você não foi nada, esquece e vive sua vida - retruquei.

-Eu liguei porque eu te amo e estou sentindo muito sua falta. Eu sei que sou uma vadia e que faço um monte de merda, mas eu amo você de verdade, ok? O que você quer ouvir? Um pedido de desculpas? Ok, desculpa João Guilherme, por eu ser tão filha da puta. Tá bom assim? 

-ANA! Presta atenção no que você tá falando! Eu não quero ouvir nada de você, só quero que a gente viva nossas vidas numa boa. A gente não precisa passar por tudo isso! EU não quero passar por tudo isso. Sabe, o melhor que você faz...

-QUEM SABE O MELHOR QUE EU FAÇO SOU EU, SEU BABACA. E PARA DE SE FAZER DE BONZÃO PORQUE NÃO ROLA. EU SEI QUE TE MAGOEI, SEI QUE SOU UMA VACA, MAS O QUE MAIS EU POSSO FAZER AGORA? EU TE AMO SEU RIDÍCULO E NÃO SEI FICAR SEM VOCÊ - eu nem tinha percebido o quanto eu sentia falta do histerismo dela.

-Aonde tudo isso vai dar? Em rolo! Você gosta dessa farra toda e eu não sei lidar com isso...

-Guilherme, cala a boca. Olha, eu sei lá onde vai dar, só sei que eu te amo. Muito. E sei que fiz tudo errado, mas estou disposta a tentar melhorar. Eu não quero perder você pra qualquer vadiazinha, eu te amo. Af, olha o que você faz, to me humilhando igual uma idiota!
Sabe quela sensação escrota de sentir as mãos suando e o coração inflar a ponto de apertar as costelas? Se você já foi apaixonado por alguém, vai saber do que eu to falando.
Agora eu entendia o que era estar plenamente  feliz de novo. A bebida, as drogas e as outras mulheres eram só distrações perto disso.

-Quem está aí? - a voz da monitora quebrou toda aquela tensão e eu gelei. 

-Er, Guilherme - respondi imediatamente. -  Eu tava passando mal e foi o primeiro lugar que eu achei, foi mal aí tia.

Ana percebendo que eu não ia mais responder, pediu para que eu fosse vê-la depois da aula e desligou.
Saí da cabine como quem acabou de vomitar as tripas. A monitora perguntou se eu precisava ir embora e disse que eu estava muito pálido (não falei que eu tinha um bom álibi?). Agradeci a ela e falei que só precisava tomar um ar.

Caminhei até a sala bem devagar e em silêncio. Ainda mastigava todas as palavras dela.
"Eu te amo seu ridículo e não sei ficar sem você"
"Eu não quero perder você pra qualquer vadiazinha, eu te amo."
Apesar de ambas terem um insulto à mim e as outras garotas que eu saio, faziam eu me sentir muito, muito feliz. Eu podia resolver tudo aquilo, eu podia ter a Ana de volta.
Uma ideia estalou na minha cabeça e logo me revoltei. Se eu acordasse em alguns minutos ia ficar muito puto, não podia ser outro sonho. Não mesmo.